quinta-feira, 4 de junho de 2020

Concertos pelo centro histórico.

Houve uma época em que eu era assídua frequentadora do Theatro Municipal. Eu ia sempre a uns concertos que aconteciam ou durante a semana à noite, ou sábado de manhã. Mesmo não entendendo nada do tipo de música que é apresentada lá, eu gostava. Gostava simplesmente de estar lá, da arquitetura, de sair da zona norte.

A primeira vez que vi o Zé Celso em cena, foi lá. A Marilena Chauí tinha preparado uma programação em homenagem ao aniversário da cidade. Levei minha mãe. O Wisnik performou o Soneto do Olho do Cu, ao piano. Também já fui com minha mãe e meu pai, em outra ocasião.

Eu não devia ter nem meus vinte anos e conheci um cara uma vez, num concerto no Pátio do Colégio. Ele era bonito e mais velho. Lembro que fazia pós em entomologia e morava na rua Pires da Mota, meio Liberdade, meio Aclimação. Ele era louco pra me comer. Eu, não sei bem o que queria com ele. Nunca rolou nada, mas fomos ao Municipal juntos. Depois, ele desistiu.

Minha libido foi contida, por muito tempo. Devoradora de corpos e experiências, por outro lapso de tempo. Até que acontecimentos de todo tipo, incluindo aí problemas de saúde, soterraram com ela de uma vez. Se aquele bofe da Pires da Mota aparecesse na minha frente de novo, acho que mandaria ele cagar. Mas tenho saudades de bater perna em busca de um lugar pra ouvir música no centro.

                                                      Imagem: Instagram da autora.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Largo São Francisco e arredores.

Em 1995, eu comecei a trabalhar num prédio na rua José Bonifácio, no calçadão próximo ao Largo São Francisco. Fiquei ali por alguns anos. Eu descia na estação Sé do metrô, percorria uma rua que tem pequenas joalherias que vendem coisas baratas de ouro, passava no Rei do Mate e tomava mate com leite e aveia, que gosto até hoje. Andava um pouquinho mais e estava no meu trabalho.

Do outro lado da rua, no calçadão, havia vários estabelecimentos que hoje, são apenas memória.  Deixaram de funcionar já faz algum tempo. Tinha uma joalheria chamada Conde de Monte Cristo. Uma vez, meu pai fez uma viagem a trabalho pra São Paulo e me trouxe um bracelete de prata comprado lá. Mais de dez anos depois, eu passaria boa parte dos meus dias bem próxima a loja. Eu sempre gostava de dar uma olhadinha na vitrine. Lembro de ter comprado um par de brincos de pérola e outro de ouro esmaltado com uma pintura que representava um par de joaninhas. Era um lugar simpático e acessível, sem ter cara de coisa roubada igual ao comércio de ouro da Praça da Sé.

Lembro de uma banca de frutas maravilhosa, que existia no local há muitos anos, antes mesmo que eu frequentasse. Gostava de pegar alguma coisinha por lá e ficar ouvindo as estórias do dono, um senhor grisalho de jaleco azul. Tudo vinha fresco diretamente do mercadão, que naquela época era bem diferente da macumba pra turista que é hoje.

Eu era habitué de uma loja do Café do Ponto - naqueles tempos eu não tinha o gosto tão apurado pra café e qualquer coisa que tomava, achava ótimo - que era de dois orientais, que viviam me paparicando. Certa vez meu pai apareceu do nada, vindo do interior pra resolver uns assuntos no INSS e deixei ele lá, se fartando com salgados bem gostosos, torta de limão, tomando café e contando aquele monte de causo que só ele e o Rolando Boldrin sabem contar. Ele adorou.

Tinha - e tem até hoje - o edifício Saldanha Marinho e ao menos uma vez por semana, havia assuntos de trabalho a resolver por lá. É um belíssimo prédio estilo Art Déco, mas naquela época, eu nem sabia direito o que é isso. Não ligava muito pra arquitetura, mas tinha percebido que era uma construção diferentona das demais. 

Essa semana, descobri que o Itamarati fechou. Era um restaurante de comida razoável, piso em ladrilho hidráulico e garçons de verdade - não aquele povo bonitinho, que estuda teatro e faz bico de garçon - de idade bastante avançada. Na verdade, devo ter ido lá umas três vezes no máximo, se tanto. Dois motivos me afugentavam: vivia abarrotado de advogados e juízes, era como se eu continuasse em ambiente de trabalho. O segundo motivo, talvez seja uma decorrência do primeiro: era caro pro meu bolso, na época. Mesmo assim, saber de seu fechamento, me deu uma tristeza infinita. Ele funcionava naquele endereço, desde 1946 e foi riscado do mapa com a pandemia.

                                                   Imagem: Instagram da autora.

sábado, 30 de maio de 2020

Cinemas de rua e cineclubes: breve inventário.

Por um bom tempo, meu lazer em São Paulo se restringia apenas a programações gratuitas ou a preços simbólicos. Mesmo quando morei próximo ao primeiro shopping da zona norte, onde meus colegas de escola iam assistir blockbusters quando matavam aula, esse não era um programa acessível para mim.

Em algum dia da década de 90, eu conheci o Centro Cultural São Paulo e fiquei encantada com tudo. Eu só não frequentava mais, porquê muitas vezes eu não tinha nem o dinheiro da condução. Quando conseguia ir, passava o dia todo. Sentada na discoteca Oneyda Alvarenga ouvindo música, pesquisando na biblioteca, estudando nas mesinhas do entorno, admirando aquela arquitetura que em nada lembrava os anões de jardim e o cinza das fábricas da Vila Guilherme. O teatro e os shows, mesmo que a preços módicos, nem sempre estiveram ao meu alcance.

Mas o que eu mais gostava - e continuei frequentando mesmo quando tinha dinheiro pra ir onde quisesse - era da sala de cinema. Assisti a muitas mostras de cinema argentino, italiano, francês e várias outras, de graça naquela sala modesta. Há muito tempo atrás, sempre tinha uns moradores de rua que aproveitavam a sala no calor, por causa do ar condicionado. A melhor época de programação pra mim, foi quando a Marilena Chauí era secretária de cultura. Calil também deixou saudades.

Lembro de ter ido mais ou menos por essa época, assistir alguns filmes no Museu Lasar Segall. A Pequena Loja da Rua Principal e Um Dia, Um Gato me marcaram. Tive a impressão de que a sala fechou por um bom tempo e só voltou com a programação bem depois, após passar por uma reforma. Mas não tenho certeza se realmente ficou fechada.

Quando comecei a ter dinheiro para ir onde bem entendesse, eu só queria saber de programação de cineclubes e alguns bons cinemas de rua, que ainda existiam. A programação mais comercial, nunca chegou a me atrair. Eu já tinha formado meu repertório nas salinhas espalhadas pela cidade e não abria mão de filmes de qualidade. A princípio, não se tratava de uma escolha e sim de algo involuntário, pois os cineclubes eram um dos poucos lugares que eu conseguia ir. 

Nessa busca por programações especiais na cidade, conheci vários outros espaços. O Elétrico Cineclube ficava na Augusta, perto da Paulista, no sentido centro. Se não me engano, funcionava onde mais tarde seria um espaço que teve vários nomes de banco diferentes e hoje, acho que atende pelo nome de Espaço Itaú de Cinema. Já tendo sido HSBC (confere?) e Espaço Unibanco de Cinema.

Continuando pela Augusta, sentido Jardins, numa galeria na altura do número 2500, tinha o Vitrine. Era outro lugar que eu adorava e fechou. Não sei o que ficou em seu lugar. Assisti muitos filmes da Mostra por lá, mas o que vem na minha lembrança é o Livro de Cabeceira, do Peter Greenaway. 

Não falarei sobre o Cinesesc nem sobre a Cinemateca, pois são lugares que merecem textos à parte. Principalmente a segunda, onde inclusive, fiz trabalho voluntário. Outro caso isolado, é o Cinema do MAM, que não sei se ainda existe. Tenho o cotovelo esquerdo torto, em função de um acidente tentando chegar lá para um filme que até hoje nunca vi. Isso também é outra estória.

Outro cineclube que doeu quando fechou as portas pra virar, acho que um estacionamento, foi o Veneza, no comecinho da Rua Treze de Maio, no Bixiga. Houve um tempo em que ele tinha uma programação onde passava um filme em cada sessão, aos finais de semana. Eu era tão dura e tão apaixonada por cinema, que quando o filme acabava mas antes de acender a luz, quando estavam subindo os créditos, eu corria pra me esconder no banheiro, que ficava dentro da sala. De lá eu só saía quando estava tudo escuro de novo, pra assistir ao outro filme. Eu assistia três filmes num único dia, recorrendo a esse expediente e pagando só uma entrada.

Tenho uma lembrança muito boa, de quando eu tive que fazer uma cirurgia no queixo e fiquei imobilizada por meses e o meu pai chamou um taxi e assistimos juntos a um filme que estava passando no Veneza. Depois, fomos andando até a Praça Dom Orione, conversamos um pouco - eu na verdade, balbuciava porquê estava com a mandíbula imobilizada - e voltamos pra casa, na Vila Guilherme. Não lembro qual foi o filme. Outra ocasião que iria ao cinema com meu pai, foi para assistir A Flor do Meu Segredo, do Almodóvar, que ele gostou muito. Não sei o por que de não ter ido mais vezes ao cinema com ele. A bem da verdade, tínhamos uma incompatibilidade muito grande e mesmo convivendo por muitos anos, sempre fomos uma caixa preta um pro outro.

O Bijou e o Oscarito, um ao lado do outro e minúsculos. Eu adorava os dois. Ficavam na Praça Roosevelt. Frequentei muito, tanto quando era dura, na década de 90, quanto mais tarde, quando chegava lá em meu próprio carro. Muito me admira, certas pessoas ligadas a um teatro supostamente maldito e revolucionário, que ficam até hoje bradando aos quatro cantos que "revitalizaram" a Praça Roosevelt. Como se fosse um lugar altamente perigoso, como se estivessem falando de uma quebrada, o mesmo lugar que eu frequentava a pé e sozinha, altas horas da noite, pra ir aos meus cineclubes favoritos. Esse povo, que chegou depois, não revitalizou nada, mas apenas trouxe a reboque uma gentrificação do espaço. Saudades de quando eu era adolescente e encontrava Plínio Marcos vestido feito um mendigo, com seus livros debaixo do braço, na Praça da Sé. Esse sim, um maldito de verdade. O resto, prefiro nem me alongar.

Dos bons cinemas de rua, lembro de ter assistido a um filme da Mostra Internacional de Cinema, na década de 90, em um suntuoso cinema da região da Ipiranga com a São João. Não lembro o nome e com certeza, está desativado. Lembro que tinha cortinas de veludo, dois andares dentro da sala de exibição, um hall enorme e muito mármore.

Tinha o cine Paramount, no comecinho da Brigadeiro Luís Antônio, também no Bixiga. Frequentei algumas vezes. Lembro de ter assistido Ligações Perigosas. Foi desativado e virou sei lá o que. Às vezes, é melhor nem saber mesmo.

No Top Cine, na Paulista, eu também batia cartão. Assisti muitas mostras do Truffaut e do Godard por lá. O pessoal que vendia pipoca já me conhecia pelo nome. Eu ficava tão à vontade, que já cheguei a ir durante a semana assistir filmes de chinelo, com roupa de ficar em casa mesmo. Pra mim, não tinha muita diferença, me sentia em casa. Eu sempre preferi assistir filmes durante a semana, por ser mais vazio. Aos fins de semana, só ia quando estava namorando.

O Gemini, na Paulista, eu achava tão maravilhoso, que fiz um texto em sua homenagem no outro blog que tive, há uns quinze anos atrás. Por uma trapalhada qualquer, perdi meu blog no buraco negro da internet. Nunca mais consegui acessar, mas ao tentar criar um perfil para este blog, automaticamente veio meu perfil antigo, Madame. Sigo sem conseguir acessar o outro blog e minha declaração de amor para o cinema de rua mais charmoso, eu perdi.


                                               Imagem: Instagram da autora.

















sexta-feira, 29 de maio de 2020

Nós sempre teremos o Pari.


Se existia algo de bom em morar na Vila Guilherme, era ser vizinha do bairro do Pari. O Canindé, de Carolina de Jesus, também era logo ali, acho que bem nesse miolo entre os dois. Do último, pouco me recordo. Lembro de muitas vezes, batendo perna, avistar o estádio da Portuguesa. Mais nada.

Bastava uma caminhadinha, atravessar a Ponte da Vila Guilherme e já estávamos no Pari. Eu rodava o bairro todo, percorrendo os depósitos de doce com meu avô. Eu ajudava ele a carregar a compra que seria o nosso sustento. Caixas de balas de goma, amendoim doce e salgado, chocolate do Fofão (sim, isso existiu e era muito ruim), fardos de biscoitos de polvilho, embalagens diversas pra acondicionar os doces porcionados, tudo isso carregávamos a pé. 

Meu vô era camelô e algumas poucas vezes, também fiz o mesmo serviço. Eu não trabalhei mais vezes vendendo doces e biscoitos na rua, porquê meu vô não aceitava. Mais de uma vez, ouvi de sua boca que eu "só" comia, cagava e estudava. Mas mesmo assim, ele não aceitava que eu ficasse na rua. Então, além de fazer a parte das embalagens, eu procurava ajudar no transporte das compras também. E na verdade, eu adorava percorrer os depósitos de doce do Pari com meu avô.

Nesse Recanto do Lumpesinato, que era nossa casa, nunca faltava barulho. Éramos cinco adultos, mais um monte de gente que frequentava a casa e todas as crianças do meu tio, muitas vezes por semana. As pessoas falavam muito alto, gritavam - até porquê, meu vô era surdo. Nas horas vagas, ele, meu pai, meu tio e outros parentes, estavam sempre aos berros na garagem - que ficava do lado do meu quarto, no quintal e era um misto de sala de refeições e estoque - jogando baralho. Sempre meu vô estava querendo mostrar meu quarto pra alguma visita e as crianças do meu tio, eram as mais mal criadas que já vi na vida.

Eu não conseguia estudar dentro de casa. Nem quando estava no colegial, nem quando estava me preparando pro vestibular, nem quando já estava na USP. Só alguém que conviveu num ambiente assim e outros como CRUSP - onde fiquei todo o tempo como hóspede e muitas vezes, hóspede irregular, ou seja: amontoada em qualquer canto - é capaz de entender o tanto que valorizo meu espaço e a possibilidade de estar só, no meu canto, com minhas coisas.

Até que numa dessas andanças, eu descobri a Biblioteca Municipal Adelpha Figueiredo, no bairro do Pari, numa pracinha logo depois da ponte. Não posso imaginar como esteja agora, mas na década de 90, era um oásis e eu queria morar lá. Bom atendimento, alguns bons livros expostos pra doação de vez em quando, cabines de estudo na parte de cima. Muitos livros da graduação do curso de História, que estavam sempre emprestados nas bibliotecas da FFLCH, eu conseguia por lá. Se me foi possível terminar meu segundo grau, estudar pro vestibular e mesmo levar minha graduação enquanto estudante pobre numa universidade para privilegiados, muito disso devo a este lugar.

Toda vez que eu me trancava numa cabine grande, que tinha umas quatro mesas, eu encontrava um sujeito mais velho que eu que também ia lá todos os dias. Ele era bem bonito, mas eu era muito focada e procurava nem olhar pra cara dele. Mas ao contrário, ele não tirava os olhos de mim - num misto de um jeito solícito, do cara mais velho que poderia me ajudar com meus estudos se eu desse abertura e um interesse mal disfarçado. Nunca dei a chance de uma palavra e passado um tempo, nunca mais vi. 

Um belo dia, já aluna da USP, fui ao CEPEUSP pela primeira vez e fui fazer meu topless. Quando eu tiro a toalha e fico com meus lindos seios de mulherão escultural que um dia fui à mostra, a primeira pessoa que vejo foi ele. Acompanhado de uma mulher, talvez namorada. Pude perceber o atordoamento nos seus olhos. A bem da verdade, eu era a única que fazia topless, mas acho que isso nem era o caso. Acho que jamais ele poderia imaginar uma menina tão retraída como aquela da biblioteca, tão à vontade com os peitos de fora, como a que estava na frente dele. Infelizmente, nunca mais o vi.

Nessa casa tão cheia, de vez em quando aparecia um parente do interior que vinha visitar a gente e resolvia fazer um tour pelas lojas de comércio popular do Pari, Brás e Largo da Concórdia. Nessas ocasiões, eu funcionava como uma espécie de guia. Levávamos o dia inteiro nisso e no final, eu ganhava um dinheirinho - que devia ser o equivalente a um lanche num lugar barato - e ficava imensamente feliz.

Eu e minha mãe adorávamos a Igreja de Santo Antônio do Pari e suas festas. Sempre que sobrava algum trocado, era para lá que íamos. Saudades de bater perna com meu vô, da biblioteca e seu bofe misterioso e de ir às festas da igreja com minha mãe.


                                                 Imagem: Instagram da autora.





quinta-feira, 28 de maio de 2020

Flâneur

Desde quando cheguei em São Paulo, eu andava muito. O dia todo. As coisas mudaram quando comecei a trabalhar. Foi um caminho de sedentarismo sem volta. Como trabalhava de dia e estudava à noite, a pressa e a sensação de tempo perdido sempre me acompanhavam. Passei a me deslocar de ônibus e metrô - comecei a ter algum dinheiro também - e bater perna foi se tornando algo cada vez mais raro. Pouco tempo mais tarde, compraria um carro. Desde que fiquei sem carro, passei a usar muito taxi. Aqui em Santos - no meu curto período de permanência, antes do confinamento - ando de ônibus nos dias úteis e a pé, aos fins de semana.

Tudo isso envolvia disponibilidade de tempo, um olhar curioso e falta de grana também. Antes de começar a trabalhar, cada centavo gasto fazia muita diferença. Tanto pra mim, quanto pra minha família. Eu ia a pé pra escola, pra biblioteca no bairro do Pari, aos depósitos de doce com meu vô. Com minha mãe e minha vó, andávamos longe pra ir em qualquer supermercado que tivesse alguma mísera oferta. Hoje, posso comprar o que eu precisar sem ter que ficar contando dinheiro ou procurando o lugar mais barato. Procuro fazer minhas escolhas em função da qualidade e comodidade. Não sinto saudade da dureza dos velhos tempos.

Eu tinha uns programas muito bizarros, que basicamente envolviam andar muito a pé. Eu saía da Vila Guilherme, atravessava uma ponte sobre a Marginal Tietê e estava no Pari. Lá chegando, eu percorria a Carlos de Campos inteira até sair na Igreja de Santo Antônio. De lá, eu pegava umas ruas que iam dar no Largo da Concórdia. Seguia pela Rua do Gasômetro, acho que pegava a Rangel Pestana e saía na Praça da Sé. E lá eu ficava plantada por horas, tomando um forguim - como dizia meu vô - e observando o movimento. Depois fazia todo o caminho de volta.

Quando eu estava mais abonada, eu me dava ao luxo de tomar um ônibus até a Praça da Sé. De lá, eu ia andando até a Brigadeiro Luís Antônio e a percorria toda, até chegar no Parque do Ibirapuera. Já no parque, não havia condições para comprar uma água, um sorvete, nada. Ainda assim, eu adorava. Na volta, ia até a Praça da Sé e tomava meu ônibus. Eu fazia qualquer negócio pra sair da Vila Guilherme.

Lembro também, de ter ido pra Paranapiacaba uma vez. Eu tinha unicamente o dinheiro do trem e do metrô. No metrô, um professor com uma excursão de escola, me incorporou ao grupo. Numa das trilhas, não lembro se debandei deles de propósito ou se me perdi. Sei que estava descendo sozinha, na neblina, numa trilha que não conhecia. Encontrei um grupo de orientais, que não falavam português entre eles. Eram duas senhoras e um senhor.

No começo, percebi que ficaram me estranhando. Mas, passados alguns instantes, me chamaram para juntar-me a eles. Andamos muito e por fim, chegamos numa espécie de boteco de beira de estrada. Não tinha quase nada lá, naquela época. Eles pararam pra comer umas coisinhas e tomar refrigerante e perceberam que eu não tinha dinheiro. Pagaram tudo pra mim e ainda o meu trem e meu metrô de volta. Sem que eu pedisse. Despedimo-nos na estação e voltei pra casa toda contente.

O centro sempre exerceu um magnetismo muito grande sobre mim. Quando comprei meu carro, pude aperfeiçoar meus hábitos estranhos que tinha, andando a pé. Eu gostava de ficar rodando pela Praça da Sé, Pátio do Colégio, Estação da Luz. Só que de madrugada. Tinha amiga minha que curtia, tinha quem surtava também, pois eu não costumava avisar onde iríamos. Muitas vezes, ia só mesmo.

Nunca me aconteceu nada nas minhas andanças pelo centro. Nem a pé aos fins de semana, nem de carro na madrugada. Saudades da sensação de liberdade que um carro dá e de poder fazer o que quiser, quando quiser, sem dar satisfação a ninguém. Nas atuais circunstâncias, eu já ficaria feliz em poder sair andando por aí sem medo da peste.

                                                     Imagem: Instagram da autora.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

"Pa-pa-pa".

Volto à Vila Guilherme, por volta dos meus dezessete anos. Pra morar. De favor, na casa dos meus avós. Meu pai havia perdido seu emprego razoável em Angra e nunca mais conseguiria uma posição. O dinheiro que recebera, foi-se todo num período de uns três anos vivendo em uma pequena cidade do noroeste paulista, onde ele e minha mãe cresceram. Onde ele viveu até o fim de seus dias e ela vive até hoje.

Agora vivemos um pouco próximos ao shopping. Lá tinha um supermercado enorme, onde eu e minha mãe íamos, quando precisávamos fazer compras de itens básicos. Aproveitávamos pra procurar por coisas de graça pra comer. Degustações e algumas frutas pequenas, que devorávamos por lá. Tinha sempre um segurança atrás da gente.

Eu já tinha meus quase dois metros de altura, mas pesava apenas cinquenta e oito quilos. Usava roupas de doação. As calças jeans do meu tio, que é bem baixinho, viravam bermudas. Vestia também os vestidos cafonas e pouco usados de uma prima da minha mãe de Osasco, que era uma senhora baixinha e gorda. Estava sempre coberta por toda sorte de tecidos, com medidas bem distantes das reais dimensões do meu corpo. Nunca reclamava por isso.

Comecei a estudar num colégio horrível, que parecia mais um cadeião. Quase todas as escolas
estaduais de São Paulo, tem esse aspecto. Ao menos quando eu era adolescente tinham. O colégio no qual estudei no interior, também parecia uma prisão. Embora não fosse tão perto, eu ia e voltava a pé pra escola da Vila Guiherme. Todos os alunos eram de classe média baixa e mesmo menores de idade, chegavam dirigindo. Quase sempre, um Escort ou uma moto. Bullying era algo constante, só que eu não sabia que tinha esse nome. Eu nunca tinha dinheiro nem pra comprar um salgado na hora do recreio e ao contrário da escola do interior, não tinha sopa de graça. Talvez em função do horário que eu estudava.

Certa vez, os idiotas da minha classe insistiram para que eu fosse assistir um filme ridículo no centro da cidade com eles. Eu não tinha dinheiro. Minha mãe deve ter estourado todos os cofrinhos, fez questão que eu fosse e me fez vestir minha melhor roupa - essa nem era doada. Chegando lá, acho que assisti Esqueceram de Mim, ou qualquer porcaria parecida e passei muita vergonha, com eles tacando pipoca em todo mundo e gritando no cinema. Pra mim, fora um imenso sacrifício, tanto em termos financeiros quanto emocionais.

No dia seguinte, quando eu estava chegando perto da sala de aula, consegui ouvir do corredor meus colegas falando de mim e caçoando das minhas roupas, do meu calçado, de tudo. Segurei o choro - arte que domino desde a tenra infância, quando meu pai foi encontrado caído num quarto de hotel, com aneurisma e quase morreu - entrei na sala como se nada tivesse acontecido e cumprimentei a todos. Tudo que eu queria era que aquele ano acabasse e eu nunca mais tivesse que olhar pra cara deles. Os professores também não colaboravam e alguns estavam sempre implicando comigo. Exceção da professora de História, que no fim do ano me deu uns presentes e algumas guloseimas, dizendo que eu era muito magrinha.

A diretora da escola, mulher esguia, ruiva e de olhos azuis, de vez em sempre entrava na nossa sala pra dizer que estava ali fazendo um favor em nos aturar, pois era casada com um economista. Insistia em ficar comparando a gente com o filho dela, que estudava no Bandeirantes. Acabei de lembrar, que ela também dava aulas de Matemática, além de ser diretora. Mais de uma vez, ela levou o gerente do Mac Donald's mais próximo pra conversar conosco e oferecer a maravilhosa oportunidade de trabalhar lá. Era esse o projeto de educação dela pra gente.

O ano finalmente acabou - assim como eu espero que esse 2020 termine e eu consiga sair a salvo, ainda que com sequelas - e pouco tempo depois, eu estava cursando História na USP. Minha mãe me inscreveu pro vestibular na PUC, porquê tinha certeza de que eu não passaria numa universidade pública. Eu tinha me inscrito na UNESP também e fiquei bem chateada com a atitude dela, tanto pelo descrédito como pela maratona de provas que eu ia ter que fazer de uma só vez. Passei nas três e cogitei ir pra UNESP, pra poder ter uma existência mais autônoma. Acabei ficando em São Paulo, mesmo.

Por um bom tempo, fiquei pra lá e pra cá, entre o CRUSP e a casa dos meus avós na Vila Guilherme. Agora, eu tinha duas camisetas - que não tinham sido de ninguém antes e eram do meu tamanho - e um tênis pra ir pra faculdade. Era uma camiseta da Mafalda e uma de um poema do Maiakóvski, que ganhei. Punha uma, tirava pra lavar, vestia a outra. O tênis, era um Nike de couro que meu tio me deu. Um dia, ele me pegou de carro e levou até uma loja de calçados para escolher um. Escolhi o tênis mais barato que tinha. Ele disse que era muito ruim e voltou com um lindo tênis branco.

Meu tio passava na sexta-feira por lá e soltava seus seis filhos - um mais mal criado que o outro - e só passava de volta pra recolher, na segunda-feira. Eu queria morrer e odiava aquelas crianças com toda intensidade da minha vida. Eu odiava os parentes e vizinhos malufistas. Acho que a Vila Guilherme inteira era malufista e meu peito era uma caixa de ódio.

Meu vô tinha aquele costume de pobre, de ficar mostrando a casa inteira pra todo mundo que chegasse. Ele não sabia ler direito, coitado. Ele vivia abrindo meu quarto - que era um cômodo apartado, no quintal da casa - pra mostrar pros parentes e vizinhos malufistas que chegavam. Só que na parede tinha um cartaz com letras garrafais: "O bom malufista é o malufista morto." Quando paro pra pensar na barbárie que estamos vivendo hoje, sinto até saudade dos malufistas.

Minha vó vivia humilhando todos nós. De vez em quando, ela ficava nervosa e ameaçava desmaiar ou coisa parecida. Eu esfregava álcool nela e ficava abanando com a tampa de uma caixa de sapato.

Meu pai quando conseguia fazer algum bico, me levava pra comer feijoada no bar das portuguesas da esquina. Uma vez, ele até me levou na noite anterior para assistir aos preparativos e fez profundas digressões sobre o assunto. Foi um momento precioso e sinto falta da companhia dele para feijoadas e algumas outras coisas.

As portuguesas da esquina eram três mulheres velhas e a mãe, chamava as filhas de "filita". De casa dava pra ouvir: "filita, cuidado pra atravessar a rua". A gente achava muito engraçado, aquela senhora tratando outras mulheres de idade avançada como se fossem crianças. Mas hoje, com quase cinquenta anos, é mais ou menos do mesmo jeito que a minha mãe me trata. Sim, somos motivo de riso também.

Tinha também o Zuada, que era um cara que vivia na rua e pelas madrugadas gritava: "pa-pa-pa" ou "amanhã é feriado". Sempre tivemos a impressão de que o Zuada desenvolveu algum stress pós traumático envolvendo alguma situação com tiros. O "pa-pa-pa" dele, claramente eram tiros e até sua feição mudava.

Na Vila Guilherme, sempre moramos em lugares com enchente. A tal da Vila Guilherme baixa. Uma vez, voltando da casa de uma amiga em São Bernardo, fiquei presa na rodoviária quase um dia inteiro, pois a água não baixava. Já passei por tanta enchente, que de vez em quando, penso que leptospirose é fanfic. Mas não sou negacionista de doença, não.

Chegou um dia, em que foi todo mundo de mudança pro interior. A tal da cidadezinha no noroeste paulista, de onde vieram. Meu tio me deixou no CRUSP, com uma caixa de papelão com uns poucos pertences. Minha vó me deu uma panela e falou que era pra eu poder fazer Miojo. Depois disso, eu voltaria a Vila Guilherme umas poucas vezes, pra comprar roupas plus size.

                                            Imagem: Instagram da autora.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Vila Guilherme.

Na minha infância, entre as décadas de 70/80, minha maior felicidade era quando saíamos de Angra dos Reis (onde cresci até os catorze anos) e íamos para São Paulo, visitar meus avós maternos. Se meu pai fosse junto, íamos até o Rio de Janeiro e tomávamos avião. Não foi nas asas da Panair, mas nas da Varig e da Vasp, onde descobri que as coisas mudam e que tudo é pequeno. 

Mas eu gostava mesmo, era de viajar de ônibus. Eu ficava absolutamente encantada, quando a gente chegava na rodoviária antiga, que ficava na Praça Júlio Prestes, na região da Luz. Ela era toda coberta por pastilhas coloridas transparentes e eu dava trabalho pra sair dali. Fiquei chateada quando soube que não existia mais.

Meus avós moravam na Vila Guilherme, meu tio com a esposa dele também. E lá eu passava meus dias, sendo terrivelmente mimada enquanto filha, sobrinha e neta única. A comida que eu mais gostava de comer era o frango ensopado da minha vó. Ela fazia com batata e punha colorau, que eu achava um negócio muito bonito também, aquele pozinho vermelho.

Meu vô gastava todo dinheiro que não tinha, comprando chocolates pra neta que vinha do Rio. Lembro da casa da vó Cida cheia de bolachas cream cracker e latas de torrada, que ela fazia todos os dias. Tanto meus avós como meu tio, moravam em dois cômodos, na parte baixa da Vila Guilherme. Nessa época, São Paulo ainda era a terra da garoa.

Posso afirmar que no sistema Pantone, eu era pelo menos uns cinco tons acima do que sou hoje. A cor se foi, restaram as incontáveis pintas. Muitas das quais tive que remover em consultório médico e mandar pra exames. Naquela época, a exposição ao sol era uma coisa meio selvagem. Não havia esse negócio de protetor solar e sim, bronzeador. Os mais abonados, conseguiam comprar rayito de sol, que vinha do Paraguai. Em casa, era Copertone mesmo.

Eu era uma garota dourada que vivia em uma das praias mais lindas do Brasil - as praias de Angra e de Paraty das décadas de 70/80, não existem mais. Não na forma de acesso que tinham antes. Hoje, a maioria está tomada por grandes empreendimentos hoteleiros, virou propriedade privada com construções quase dentro da água, cão de guarda, segurança, etc. E ainda tem os turistas.

Ter crescido num lugar assim, faz com que eu seja bastante blasé no que diz respeito ao meu interesse por praias. Talvez isso explique minha absoluta falta de curiosidade pelas praias de Santos, com seus sete canais de esgoto (tratado, mas segue sendo esgoto) e lixo das palafitas boiando no mar.

As boas lembranças da Vila Guilherme que trago, são dessa época. A impressão que eu tenho é a de que era um bairro predominantemente operário. Todo mundo trabalhava na Nadir Figueiredo, na fábrica de charutos (esqueci o nome), ou em alguma outra indústria. Não se ouvia essa estória de desemprego e mesmo sendo peões de fábrica, as pessoas levavam uma vida muito melhor que muita gente de classe média leva hoje.

Minha vó, meu tio e sua esposa, eram evangélicos. Não lembro de qual Igreja, mas era daquelas mais toscas mesmo. Meu avô era ateu, mas de vez em quando me levava de rolê em alguma igreja, onde gostávamos de bater palma e gritar. Eu e meu avô achávamos muito divertido e fazíamos isso, só pra poder estar perto das pessoas. Talvez o nome disso seja inocência. Talvez, espírito de porco mesmo.

Todo mundo que eu conhecia na Vila Guilherme, era crente. Eu tinha também a bisavó Emília e o bisavô Abrão, que moravam em uma sobradinho cor de açafrão e logicamente, eram evangélicos. A vó Emília tinha um pequinês bem velhinho e cego, que ficava sentado no pé da gente. Esse era um cachorro que eu acho que era moda naquela época. Pelo menos na Vila Guilherme.

A louça das casas do meu tio, dos meus avós e bisavós, era toda colorida. Não tinha esse negócio de banheiro branco asséptico, era azul marinho, verde e outros tons. Na cozinha, lembro de mesas de fórmica vermelhas. Não era essa semgraceza de linha branca de hoje, não.

Lembro que adorava andar a pé pelo bairro. Só tinha casas, nenhum prédio. Em quase todas, havia anões no jardim. Nas poucas residências católicas, havia a imagem de algum santo feito com azulejo, logo na entrada. Os carros também eram muito coloridos e meu tio tinha um fusca azul pavão.

Tinha os dias de feira e íamos eu, minha mãe e minha vó, comer pastel. Tinha um moço que visivelmente tinha problemas sérios, ou sequelas de alguma coisa, que sempre encontrávamos na feira. Todas as vezes que a gente ia pra São Paulo, lá estava ele. Ele surgia do nada na barraca do pastel e dava uma mordida em cada um de quem estivesse por ali. Depois ele desaparecia e seguíamos todos, como se nada tivesse acontecido.

Terminávamos de comer o pastel mordido por um estranho e nem ficávamos doentes por causa disso. Hoje, não consigo nem imaginar como até ontem, comíamos bolos onde as pessoas assopravam velas em cima. Aquele mundo, realmente não existe mais.

Mais tarde, eu viria a morar lá e o mínimo que posso dizer, é que não foi uma experiência memorável. Mas isso, fica para outro dia.


                                                      Imagem: Instagram da autora.

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